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_ 2015 _MAIÁ PRADO

A iminência da tragédia

Na língua grega, há três palavras para significar imagem: eidolon, eikon e phantásma. Aqui, nos interessa a terceira delas. Marilena Chauí explica em “Passeio pelo país das palavras[1]” que phantásma pertence à família do substantivo pháos (luz) e do verbo phaino (fazer brilhar, fazer aparecer, mostrar-se, manifestar-se, etc.).

No conjunto de pinturas recentes da artista plástica Tatiana Blass, das séries Teatro (2015), Ibsen (2014) e De costas / Teatro (2014), tem-se a sensação de estarmos diante, invariavelmente, de figuras fantasmagóricas ou ainda de espectros que  compõem as cenas.

Na série mais antiga, De Costas / Teatro, o caráter irreal das figuras é reforçado por uma luminosidade pálida que resplandece dos rostos, ora mais nítidos, ora verdadeiros borrões. A palheta de cores tomada por tons soturnos acentua o pesar melancólico e sombrio que paira no ar. Como nas similitudes surrealistas, apontadas por Michel Foucault, phantásma remete à outro sentido, dado, muito tempo depois, pela psicanálise: os fantasmas habitam o inconsciente e, essencialmente, são formados a partir de imagens esquecidas, reprimidas ou censuradas.  Similitudes nevoentas, de sonho, que se propagam de pequenas diferenças em pequenas diferenças. Sem hierarquia, acabam por conceber afirmações distintas. 

Ainda, os espectros, quase imperceptíveis, perdidos nas massas cromáticas das pinturas que fazem parte da série De Costas / Teatro, além de evocar os lapsus freudianos utilizados pelo surrealismo, sugerem aquilo que é e não é. Espectro, lapso e iminência. Porém, é possível compreendê-los esvaziando o seu conteúdo, deixando restar apenas suas formas espectrais. Em “A muralha e os livros[2]”, Borges enfatiza que as formas tem sua virtude em si mesmas, e não em um conteúdo pressuposto. O que importa é o que elas insinuam, as metáforas que geram, sem chegar a nomear: “A música, os estados de felicidade, a mitologia, os rostos trabalhados pelo tempo, certos crepúsculos e certos lugares querem nos dizer algo, ou algo disseram que não deveríamos ter perdido, ou estão a ponto de dizer algo; essa iminência de uma revelação que não se produz é, quem sabe, o fato estético”. Tatiana Blass identifica quase todas as pinturas desta série como “Teatro” ou “De Costas”. Os títulos sugerem uma aproximação, mas não definem seu conteúdo.   

Diferentemente do que ocorre na série Ibsen (2014). Nesta, a artista indica nomes de peças do dramaturgo norueguês Henrik Ibsen (1828 – 1906): Jonh Gabriel Borkman, Hedda Gabler e O Construtor. Neste conjunto, tudo se distingue do anterior. Não é mais um teatro indefinido, sem lugar e atemporal. Trata-se de Ibsen, considerado um dos fundadores do teatro moderno. Isso, por si só, está carregado de referências e de narrativas específicas. Por exemplo, os dramas ibsenianos são marcados pela presença da crítica social: o feminismo, a luta de classes, a corrupção são alguns dos temas discutidos. Ou igualmente importante, é a ênfase que o dramaturgo coloca na reflexão interna das personagens. Esta mudança de foco do olhar sobre si mesmo, transformou a concepção do teatro moderno.

Mas, talvez, o elemento dramático do teatro de Ibsen que melhor encontra-se transposto nas pinturas de Tatiana Blass seja a “lembrança”. Em Teoria do Drama Moderno[3], Peter Szondi mostra que Ibsen empreende uma inversão no conceito do drama. Ele diz: “As ações do presente servem apenas para revelar o passado íntimo das personagens, tornando-se a própria lembrança o tema central de suas peças”.

A memória busca a lembrança naquele limiar incerto entre a experiência vivida, o sonho e a imaginação, composta por imagens, pensamentos e fantasias. Nesta reconstrução, ela não consegue emergir como uma cópia fiel do acontecimento passado. A memória brinca,  apresentando-a como um nevoeiro, carregada de teatralidade, estilização e sugestão. Em muitos casos, a lembrança apaga o tempo e o espaço, traduzindo a realidade como um esquema simbólico e formas cromáticas tomadas por cores irreais, onde apenas figura o mistério.  A série Ibsen parece trafegar por este território.

Na série Teatro (2015), não mais o caráter fantasmagórico, - predominante em De Costas / Teatro – que toma conta inteiramente das figuras. Tampouco a preponderância das figuras reminiscentes de Ibsen. Sobretudo, há uma degradação latente. As figuras se desintegram e se dissolvem no meio do magma da matéria cromática. Elas lutam para não serem engolidas por uma massa densa que tenta, à todo custo, dominar a imagem. A batalha transcorre. As figuras resistem, com uma perturbadora vitalidade, diante da inevitável decomposição. O que está em jogo é sua existência. A série Teatro é a iminência do desaparecimento da história; uma condição-limite.   

A inquietante estranheza do trabalho de Tatiana Blass acaba por propor uma reflexão, de forma silenciosa, sobre a contemporaneidade. A escolha por recortar cenas de espetáculos teatrais, gestos dramáticos, por vezes, insensatos, impotentes, violentos e até, aparentemente, ordinários, não parece ser aleatória.

Se na Modernidade, viu-se a consagração das metanarrativas que buscavam organizar o mundo, entre as quais, figura o Teatro de Ibsen, a pós modernidade assinalou sua morte. Néstor García Canclini[4] sugere que a contemporaneidade é marcada por uma “sociedade sem relato”. Isso não quer dizer que não haja narrativas, pelo contrário, há uma profusão de relatos, descontínuos, contraditórios, fragmentários que desenham uma visualidade sem história.

Com essas séries de pintura, Tatiana Blass parece reunir fragmentos desse mundo que desaba. Fragmentos de histórias que, em suas pinturas, não chegam a ser, permanecem na iminência. Iminência como atenção e espera. Iminência da tragédia.  

 

 

 

 

 

[1] CHAUI, Marilena. Simulacro e poder: uma análise da mídia. São Paulo, Perseu Abramo, 2006.

[2] BORGES, Jorge Luis. Outras Inquisições.  São Paulo, Companhia das Letras, 2007.

[3] SZONDI, Peter. Teoria do drama moderno (1880 – 1950). São Paulo, Cosac Naify, 2001.

[4] CANCLINI, Néstor García. A Sociedade sem Relato. São Paulo, Edusp, 2012.

by arteninja