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_ 2009 _TIAGO MESQUITA

Não são assim que as coisas são: obscurantismo e razão na obra de Tatiana Blass

 

Cinema é feito de imagens recortadas e coladas. Por vezes, os cortes são tão suaves, que passamos de uma cena a outra sem perceber que o foco saiu de um lugar e foi para o canto oposto, criando uma ilusão perfeita. Mas também existem cortes secos, bruscos. Mesmo que suponham uma continuidade da ação que se desenrola diante da câmera, notamos o intervalo entre uma cena e outra. 

 

Na segunda metade da década de sessenta, Andy Warhol fazia os seus Screen tests. As imagens eram como a de retratos que duravam no tempo. Câmera parada com um personagem posando diante dela. Um dos filmes mais bonitos desta série é um em que ele retratou Dennis Hopper. 

 

O ator se mexe pouco, olha para a lente como quem espera o tempo passar. Em um dado momento, a imagem é interrompida por um destes cortes violentos. Menos de um segundo depois, a cena volta com quase nenhuma modificação. Mesmo assim, entre um negativo e outro, temos a impressão que perdemos alguma coisa na escuridão.

 

Boa parte dos trabalhos de Tatiana Blass lida com estas interrupções. Intervalos bem marcados que parecem ter rompido formas, objetos e ambientes que tinham alguma integridade. São pernas de cavalo em metal ou em mármore distribuídas simetricamente que nos fazem notar a falta do corpo do animal que deveria estar sobre elas (como em Páreo, Patas e na Cabine da Monga); ou uma sala, como a de Zona Morta (2007), que passa a ter uma faixa branca entre a parte debaixo e a parte de cima. A lacuna nos traz a impressão de um espaço recriado, farsesco, que também parece ter perdido algo de sua realidade.

 

Isso, porque Tatiana não se interessa pela realidade, ela fala é da ilusão. Do que parece ser subtraído do mundo quando transformamos as experiências em um código. 

 

Desde suas colagens de 2005, sempre achei que estes intervalos imitavam, em certa medida, um movimento que fazemos mentalmente ao converter o que vivemos ou que os outros viveram em uma imagem, uma narrativa ou uma descrição científica. Era como se a artista mostrasse os lapsos e o que ignoramos ao passar uma série de acontecimentos descontínuos, simultâneos e insondáveis em relações coerentes, bem narradas, com começo, meio e fim, causa e conseqüência. 

 

Em certo sentido, era como se ela, diante dos nossos olhos, fizesse e desfizesse os esquemas da ilusão. Sobretudo o das ilusões racionalistas, que nos fazem tomar a descrição de alguma coisa como verdade. No intervalo entre uma coisa e outra, as melhores explicações se eclipsavam, tornavam-se obscurantismo. Nesse sentido, a ilusão mais ilusória seria aquela que se pretende como verossímil. Aquela que explica as coisas como se insistisse em dizer: “são assim que as coisas são”.

 

No ano passado, a editora espanhola Dardo, de Santiago de Compostela, publicou um pequeno volume com os melhores textos sobre a artista e imagens da sua obra. A partir do livro, tornou possível a quem não conhece Tatiana apreender algo de sua trajetória. 

 

Alguns trabalhos eu não via há algum tempo. Deparei-me com elas no livro e fiquei surpreso, ao olhar retrospectivamente, como algumas relações falseadas sempre interessaram a artista. Como as imitações do que parece “natural” podem se mostrar verdadeiras na sua obra. 

 

Por exemplo, desde as pinturas de 2003 e 2004, seu interesse é pelo o que não é verdadeiro. Nos trabalhos daquela época, ela figurava relações formais artificiais, com cores parecidas da fábrica de corante de balas. Não por acaso, os trabalhos tinham nomes como Eno e Tobogã. 

 

Uma consciência cada vez maior das questões da imitação inverossímil do mundo, fez com que a artista se aprofundar na pesquisa e trabalhar com as razões que nos façam atribuir às figuras peso de realidade, à ilusão verdade. Como se não fosse nada, era como se ela perguntasse: por que dizemos que tal bala ou tal sorvete tem sorvete de abacaxi? Como, mesmo com a distância entre o gosto do doce e o gosto da fruta, conseguimos colocá-los dentro da mesma família. Mas isso não é mostrado como engano, mas como algo curioso, que faz com que os significados sejam mais maleáveis do que parecem. Por isso, ao responder o dilema, a artista não recorre às respostas científicas ou filosóficas, mas cria novas ilusões. 

 

Em uma pintura feita em 2007, chamada Xadrez prata [no livro, página 85], ela pinta formas que parecem ser positivo e negativo umas das outras sobre uma estampa regular de um xadrez pequenino. Poderíamos supor que a artista descamou uma cor e encontrou imagens soltas, que no fundo são lâminas da mesma cor, mas também podemos imaginar que são peças desencaixadas soltas que só sugerem a relação de continuidade entre uma e outra parte por estarem perto.

 

Boa parte de suas pinturas, aliás, se comporta como colagens. A artista é uma virtuose na técnica. Embora nos seus primeiros e últimos trabalhos a pincelada e a escolha da cor sejam fundamentais, existe a idéia de retirar uma forma ou figura de um lugar e colar em outro e fazer com que estas formas ganhem sentido diferente. Ela já fez isso com cavalos, com um faisão empalhado e agora faz com silhuetas de cachorro e de humanos que, dispostos como estão, parecem olhar uma cena, como se estivessem ao redor de um palco. 

 

Na última exposição que Tatiana Blass fez, em 2009, no Museu de Arte Moderna da Bahia, mostrou cachorros figurados por todos os lados: nas pinturas, desenhos, volumes e textos. Porque a artista, tal como Nuno Ramos e Bruce Nauman, também lida com a palavra como elemento visual. No caso de Tatiana, não se trata da dedicação ao ofício das letras, mas ao uso do texto como elemento expositivo.

 

Nestes textos, descobrimos, aliás, que os bichos, como o cachorro de Goya, são cegos. Circulam por lá confiando em outros sentidos. Tatiana é precisa: “são cães cegos que não se pode adestrar para se tornarem cães guia. São como atores da vida comum, que vagam pela cena, sem um comportamento predestinado”. 

 

Nas telas, eles estão sobre um palco de teatro, algumas vezes, com platéia. Parece-me que tal tema tem relação direta com o interesse da artista na ilusão. Se antes, como nas colagens da série Páreo, ou na Cabine da monga, partes de um corpo de cavalo nos sugeria a imagem integral do bicho, aqui, se trata da conversão daquelas silhuetas em uma mancha, que faz como que os cachorros se tornem mais indefinidos do que as patas de cavalo dispostas regularmente nas escadarias de um museu.

 

Quando vi as duas esculturas que a artista mostrou na exposição, as imagens dos cães me pareceram mais violentas, selvagens e corrosivas. São esculturas hiperrealistas em cera e metal. Ambas as peças se parecem muito com o animal, são cópias perfeitas. Imitam os pelos, as marcas da costela e os detalhes da pele do cachorro. O bicho dorme, mas deve estar morto. São dois, um preto, outro dourado e braço. O preto é todo de cera, sua cabeça se derrete, enquanto ele, impassível, espera todo o seu corpo tornar-se mancha pelo chão. É muito aflitivo. 

 

Já o outro cão tem mais cara de escultura. Feito sobre uma base de latão, recebe um volume de parafina branca no seu interior. O metal fundido descreve a cabeça, o pescoço, a parte de trás, o rabo e a ponta das patas do cão. A parafina faz o resto. No decorrer da exposição, a peça se deforma. A parafina também se tornou uma mancha disforme. Sobraram os restos de metal. Assim, aquela descrição das partes não é mais só incompleta, como tendia a ser nos outros trabalhos, mas mórbida. Não se trata mais de fissura, mas de decomposição e mutilação.

 

Tatiana Blass figura a morte. Mas não é o cachorro cego que morre, mas a imagem que quer eternizá-lo. Em um dos seus textos a artista anota:

 

já não consigo esconder meu

desespero. a cada minuto que passa

sou engolido pelo chão! de que

serve este inútil amigo que por mim

nada pode fazer a não ser observar

com seus olhos mórbidos meu

desaparecimento. late cão! late!

 

Ele não late, desaparece, deixa uma mancha informe como lembrança. Algo que não dá nem para nomear. Talvez, como nossa ilusão de compreender o mundo diante da tragédia, do inevitável. Não sobra muito mais do que resíduos quando o fato se põe diante de nós. Embora Tatiana mostre cães cegos, quem fica no escuro ao lado deles somos nós.

 

 

TIAGO MESQUITA | 2009

texto escrito para a revista +Soma, Kultur Studio, nº15, janeiro de 2010.

by arteninja